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Existe o aborto legal, mas regra ainda é punir

Em evento de combate à violência sexual, especialistas apontam que mulheres ainda encontram dificuldades para realizar o procedimento, mesmo em casos permitidos pela lei

Por Ana Beatriz*, Andrezza Paulo* e Edith Medeiros*, em 29/09/2022 às 12h37

A interrupção da gravidez é reconhecida pelo Código Penal brasileiro desde 1946. Porém é interpretada a partir da ideia de crime. O aborto é autorizado em casos de má formação fetal (anencefalia); quando a vida da gestante está em risco (em ambos os casos é necessário um laudo médico); se a gravidez é fruto de um estupro e em caso de gestação em menores de 14 anos, visto que toda relação sexual com uma menina dessa idade é considerada por lei estupro de vulnerável. Embora sejam claras as situações que permitem o aborto, o estigma gerado a partir da interpretação do Código Penal resulta em dúvidas nos profissionais de saúde e discussões de caráter moral.

Para discutir o tema e fazer chegar a informação ao público feminino,uma das mesas da primeira edição do Ecoar! – Festival de Ativismo para Enfrentamento da Violência Sexual) abordou a justiça reprodutiva e o aborto legal, colocando em pauta os direitos reprodutivos; não somente no âmbito sexual, como no acesso à justiça. O evento ocorreu no último sábado (24), no Museu de Arte do Rio (MAR).

A conversa contou com a participação da Ana Teresa Derraik, médica ginecologista, obstetra, mestre em saúde da família e militante dos direitos sexuais e reprodutivos; Emanuelle Góes, doutora em saúde pública; e com Gabriela Rondon, advogada e pesquisadora na Anis – Instituto de Bioética. A mediação foi de Julia Leal, assistente social e coordenadora da Casa das Mulheres da Maré.

As contradições da Justiça

O Brasil tem uma legislação restritiva em relação ao aborto. Em contraponto, tem altas taxas do procedimento, o que significa que as mulheres arriscam suas vidas em clínicas clandestinas, utilizando métodos não seguros, inclusive as que possuem o direito garantido. A interrupção da gestação passa por infinitos obstáculos que dificultam a realização do procedimento. De acordo com a advogada e membro do comitê coordenador do Consórcio Latino-Americano contra o Aborto Inseguro (CLACAI) Gabriela Rondon, “a regra é punir e não auxiliar as mulheres. Embora a legislação permita o acesso ao aborto, as mulheres estão muito longe de garanti-lo na prática.”

A lei não é eficaz, nem mesmo para as situações que se enquadram; a lei não se cumpre. Existe um grande abismo entre o que é previsto na lei e o que é feito de fato. 

Gabriela Rondon, membro do comitê coordenador do Consórcio Latino-Americano contra o Aborto Inseguro (CLACAI).

Barreiras de Acesso

O Brasil, país de dimensões continentais, tem poucos polos de atendimento, concentrados em regiões com maior poder aquisitivo. As mulheres que moram mais distante dos centros que oferecem esses serviços ficam mais expostas a complicações. Para todos os especialistas presentes no Ecoar!, o aborto não deve ser encarado como uma questão moral, mas de saúde pública.

Segundo Emanuelle Góes, vivenciamos os vazios assistenciais, onde as ofertas dos serviços estão em locais aos quais as mulheres periféricas e indígenas não têm acesso. As estatísticas apontam que essas mulheres estão incluídas no maior percentual de notificação de violências e gravidez. Em contraponto, o serviço de interrupção é mais frequente para mulheres brancas. 

Não se pode falar em aborto sem mencionar os marcadores estruturais que causam distinções na atenção às pessoas, em decorrência da raça, por exemplo. A morte materna, em consequência do aborto inseguro, acontece com mais frequência com as mulheres negras. Para Emanuelle, a decisão do profissional de saúde está baseada no imaginário sustentado pelo sistema racista. A menina branca é vista como delicada e que precisa do cuidado e encaminhamento, enquanto a menina negra é vista como culpada.

O corpo racializado não tem direito e os indicadores de estigma e do racismo são cruciais para entender o aborto além da legalidade, a partir da justiça reprodutiva

Emanuelle Góes, doutora em saúde pública.

Justiça reprodutiva e o aborto legal no Brasil 

Durante a conversa, uma ouvinte da plateia se emocionou com as informações colocadas pelas convidadas da mesa. Uma mulher de 62 anos, que preferiu não se identificar, e foi ao encontro acompanhando a filha, contou que fez aborto há mais de 40 anos, guardando desde então um sentimento de culpa.

“Eu não estava preparada, não tinha condições de ter um filho. Guardei comigo durante todos esses anos a culpa por ter feito isso. Fui trabalhar na Fiocruz cuidando de crianças pra ver se isso poderia me redimir do monstro que eu sentia que era. Se eu mostrasse pra todo mundo que eu cuidava de criança, dava alegria a elas, ninguém iria me julgar pelo que eu fiz. Hoje eu vim aqui só pra acompanhar, sem saber do tema e agradeço muito por vocês estarem falando sobre isso”, desabafa.

A mulher, que emocionou as pessoas presentes, concluiu dizendo que não se arrepende, pois a decisão que tomou fez com que criasse tão bem a filha que tem hoje e finaliza dizendo que abortaria novamente se as condições fossem as mesmas da época.

A médica Ana Teresa Derraik ressalta a necessidade, nos casos em que a gravidez envolve violência sexual, que a palavra da mulher baste, “Como falar de aborto legal numa sociedade em que o homem tem a palavra final e as mulheres são postas em dúvida, deslegitimizadas e julgadas? A vontade da mulher sobre seu próprio corpo deveria ser suficiente. A opção pelo aborto não deveria ser carregada como fardo por uma vida inteira, mas encarada como escolha, uma decisão.”   

Em caso de aborto legal, procure uma das unidades de saúde abaixo:

Maternidade Maria Amélia, Maternidade Fernando Magalhães, Hospital da Mulher em São João de Meriti (coordenado pela Dra. Ana Teresa Derraik), Hospital da Mãe, em Mesquita, e Hospital Adão Pereira Nunes.

*Comunicadoras do Laboratório de Formação em Jornalismo do Maré de Notícias

Moradores e sociedade se posicionam contra violações e violências na Maré

Operação na Maré, seis dias antes das eleições, causa indignação de moradores e de representantes da sociedade civil

Por Jéssica Pires, em 28/09/2022 às 12h43

A operação de segunda-feira (26) nas favelas Vila do Pinheiro, Vila do João, Morro do Timbau e Baixa do Sapateiro, com a presença de aproximadamente 200 homens do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), do Batalhão de Ações com Cães (BAC) e civis da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), deixa mais uma vez, impactos irreparáveis para moradores do Conjunto de Favelas da Maré. Além das mortes, danos patrimoniais e psicológicos que podem ser percebidos nas imagens e vídeos compartilhados nas redes sociais, a negação ao direito à segurança e ao ir e vir de milhares de pessoas ficam sem respostas após a ação.  

Vidas interrompidas 

Uma das sete pessoas que perdeu a vida na operação trabalhava em uma barraca em um dos eventos que aconteciam no início da ação. “Meu avô não era bandido, era trabalhador, tinha a barraca dele no baile, mas era trabalhador e morador, ali era o ganha pão dele…”, publicou na conta pessoal do Twitter a neta de José Henrique da Silva, também conhecido como “Zé careca”, que foi uma das primeiras mortes confirmadas no início da ação.

Política de insegurança 

“Os relatos de moradores do Complexo da Maré são lancinantes. Impossível, se você tem alguma sensibilidade, não se comover, não se horrorizar com a incursão bélica policial, caveirões na terra, caveirões aéreos” comentou Luiz Eduardo Soares, antropólogo, cientista político e escritor brasileiro, considerado como um dos mais importantes especialistas em segurança pública do Brasil.

“Só quem mora em favela sabe como a operação é uma ameaça para TODOS que moram aqui. Somos violados todas as vezes. Tratados como lixo. Temos nossas casas invadidas. E nossa paz tirada”, lamentou Raphael Vicente, influencer e produtor de conteúdo, morador da Nova Holanda.

“Operação na Maré!!! Mais um dia sem aulas e sem poder circular a cidade”, chamou a atenção Kamila Camillo, artista visual e moradora da Maré, também através do perfil no Twitter. Pelo menos 35 unidades escolares ficaram sem funcionamento na Maré nesta segunda.

Sangue escorre por becos e vielas: moradores e especialistas defendem que vulnerabilização da população favelada em dias de operação é falha grave de segurança pública e não ‘dano colateral’ | Foto: Pedro Prado

Alguns coletivos de comunicação também chamavam atenção para os impactos da operação no cotidiano dos moradores da Maré: “Estão desligando a energia e a Internet na Baixa do Sapateiro. Pra não termos mais acesso às informações. Mas a operação continua #OPERAÇÃONAMARÉ”, publicou o jornal coletivo Garotas da Maré.

“Operação na Maré a menos de uma semana das eleições. O palanque de Claudio Castro é às custas de vidas negras e pobres. E seu programa de governo é a morte”, criticou Monica Benício, cria da Maré e vereadora do Rio (PSOL). 

Também cria da Maré e candidata à deputada estadual do RJ, Renata Sousa, publicou: “Já são horas de operação na Maré! Ninguém aguenta mais sangue derramado e essas cenas de horror! Os moradores querem PAZ, e seus direitos respeitados. Governador, vou ter que mais uma vez relembrar ao sr. que não existe pena de morte no Brasil?”

“Fico constantemente me perguntando que Estado Democrático de Direito é esse em que vivemos. Enquanto um jovem nascido e criado em uma favela no Rio de Janeiro, me sinto cansado de tantas violências e violações de direitos que cotidianamente preciso passar por simplesmente morar dentro de um território favelado”, escreveu Luiz Menezes, aluno do Laboratório de Jornalismo do Maré de Notícias nascido e criado na Maré e estudante de ciências sociais e economia.

O que justifica o injustificável? 

O pavor e a sensação de insegurança que uma ação como essa gera para moradores é imensurável. Os diversos relatos de invasões de domicílios, subtração e danos a pertences em residências, torturas e violência psicológica evidenciam uma lógica de atuação das polícias em espaços de favelas que não se repete em nenhum outro espaço da cidade. 

Vale destacar que entre as determinações da ADPF das Favelas está a obrigatoriedade da presença de ambulâncias para prestação de socorro à possíveis vítimas e o início das operações ser pelo menos às 6h da manhã – ambas foram desconsideradas na ação desta segunda-feira.

Acompanhamento das violações 

Nesta quarta, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro junto com a OAB-RJ e a Comissão de Direitos Humanos da Alerj realizou uma visita aos moradores da Maré que sofreram situações de violências e violações de direitos. A ideia foi passar nas principais regiões que foram atingidas pela operação policial desta segunda-feira. A equipe da Defensoria disponibiliza o acolhimento psicológico para moradores impactados pela operação através da Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência de Estado (Raave). 

Moradores que desejam judicializar as violações ou os danos da operação podem comparecer ao atendimento sociojurídico do projeto Maré de Direitos, realizado pela Redes da Maré ou podem entrar em contato pelo WhatsApp (21) 99924-6462 para realizar seu agendamento.

Artistas e crianças atuam na revitalização de quadra em região simbólica da Maré

Reforma faz parte de ação com caminhão-museu nos Cieps Elis Regina e Samora Machel

Por Adriana Pavlova, em 27/09/2022 às 12h59

Tem novidade multicolorida na quadra poliesportiva dos Cieps Elis Regina e Samora Machel, na divisa da Nova Holanda com o Parque Maré. O amplo espaço de lazer usado por alunos das duas escolas e pelos próprios moradores da região está totalmente transformado e muito mais acolhedor, depois de passar pela revitalização conduzida pela artistas Pinky e Rita Wainer, com participação de crianças frequentadoras do local. 

A transformação idealizada e coordenada pela Redes da Maré fez parte de uma parceria com o Festival Agora, que trouxe para lá também, em meados de agosto, um surpreendente caminhão-museu com histórias da Independência do Brasil, visitado durante três dias por cerca de mil pessoas, entre estudantes das escolas públicas da Maré e comunidade. A ocupação inédita da quadra e do terreno comum aos dois Cieps, unindo lazer e aprendizado, trouxe novos ares à região marcada pelo conflito entre grupos civis armados do território. 

Desde a revitalização da quadra, alunos do Elis Regina voltaram a fazer aulas de esportes ali e os professores de Educação Física do Samora Machel já estão pensando num extenso calendário de programação, a começar por um campeonato de futebol durante a Copa do Mundo, enquanto também buscam novas parcerias para seguir nas melhorias. 

“A quadra não estava sendo usada, por isso a revitalização foi muito bem-vinda, melhorou muito. A ideia é que a comunidade se apodere desse espaço coletivo, que é dela”, disse Márcia Bamberg, diretora adjunta do Ciep Samora Machel, que, assim com a direção do Elis Regina, tem sido cautelosa na retomada do espaço, por conta dos conflitos na região. 

A diretora do Elis Regina, Andréa Fonseca, conta que turmas de 4,5 e 6º anos já estão fazendo aulas de esportes em dois dias da semana, mas a proposta é ir ampliando a utilização da quadra, aos poucos. O reencontro com a área ao ar livre das duas escolas, que inclui a quadra e um amplo terreno sem construção, aconteceu justamente com a chegada do caminhão-museu, um projeto da Universidade Federal de Minas Gerais, que roda o Brasil há quase uma década. A versão que estacionou nos jardins dos Cieps da Maré é especialmente dedicada a histórias de projetos e conflitos políticos ligados à Independência do Brasil. 

Mulheres na luta

Itinerários da Independência é o nome da exposição apresentada num caminhão que parece saído de filmes de ação, com diferentes ambientes expositivos: sala de cinema com vídeo curtos e animações sobre temas da Independência, sala de realidade virtual onde o visitante pode ser fotografado em momentos históricos, uma grande biblioteca, 11 painéis com reproduções de obras de arte que fazem alusão a acontecimentos relacionados à Independência em diferentes lugares das Américas, e painéis com as histórias de mulheres que lutaram pela Independência brasileira, mas que nem sempre são reconhecidas por seus feitos.

Crianças em frente aos painéis das mulheres que lutaram pela Independência | Foto: Douglas Lopes

Apesar de um dia de visitação ter sido suspenso por conta de uma operação policial na Maré, nos demais dias de funcionamento, o caminhão-museu atendeu a um público bem variado de estudantes de dez escolas da região, além de crianças e adolescentes participantes de atividades da Lona Cultural Herbert Vianna. Para a diretora Andréa Fonseca, do Elis Regina, a visita do caminhão ofereceu a rara oportunidade de um contato mais aprofundado com a História do Brasil.

“De uma forma geral, há um grande desconhecimento sobre a História do país. A exposição ofereceu uma perspectiva nova de aprendizado, facilitando a compreensão e apresentando informações nem sempre divulgadas, como das mulheres que lutaram pela Independência do Brasil. As crianças amaram, desde os pequenos até os maiores”, avaliou a diretora. 

De fato, a equipe responsável pelo nmuseu se surpreendeu com o envolvimento e a resposta das crianças das escolas mas também do público espontâneo do entorno que, em alguns casos, voltou várias vezes para aproveitar a experiência. Na biblioteca, o grande sucesso foram os livros com imagens do Rio, como contou Bárbara Deoti, pesquisadora do Projeto República da UFMG.

“Houve muito interesse sobretudo fotografias do Rio Antigo, como as de Marc Ferrez, porque eles iam comparando e falando como era antes e agora. Para nós, pesquisadores, foi muito bacana interagir com a criançada, porque, normalmente, nos outros lugares onde essa exposição esteve, a maioria dos visitantes era de gente adulta”, disse.

O interesse da garotada pelo veículo que também é museu na Maré encantou Heloísa Starling, historiadora responsável pelo projeto e autora de livros como Brasil: uma biografia, ao lado de Lília Schwarcz. Em sua primeira visita ao conjunto de favelas, Heloísa passou muitas horas observando e interagindo com os estudantes que exploraram o caminhão com muita curiosidade. 

Visão externa do Caminhão Museu | Foto: Douglas Lopes
Menina lendo na biblioteca dentro do caminhão-museu | Foto: Douglas Lopes

“Os alunos de fato me convenceram que estavam não só curtindo o caminhão como reinventando a experiência na imaginação deles. Ficavam me perguntando onde era o botão de desmontar o caminhão, porque para eles era um grande transformer (brinquedo). Também não queriam sair do cinema, voltavam mais de uma vez. Eu fui conversar para entender e me contaram que nunca tinham entrado numa sala de cinema. É apavorante meninos que moram no Rio de Janeiro, onde teoricamente teriam acesso ao cinema, não terem esse hábito, muito provavelmente pelo preço ou medo de preconceito. Eles me deram várias aulas na biblioteca sem perceberem.”

A historiadora surpreendeu-se também com o acolhimento dos alunos ao saberem que era ela a idealizadora do projeto. A estreia na Maré, segundo Heloísa, foi puro aprendizado, a começar pelo trabalho da Redes no território:

“No encontro com os estudantes, fiquei impressionada com o afeto deles. Eles perguntavam se eu era a dona do caminhão, eu explicava que era a professora e vinham me dar um abraço. O que eu vivi ali não vivi até hoje em lugar nenhum e certamente fez e está fazendo diferença na minha vida.  Cada lugar ensina uma coisa para mim e para a minha equipe e a Maré ensinou muito. Nunca vi um trabalho como o da Redes. Você vai andando, entra num galpão e vê uma aula de balé (da Escola Livre de Dança da Maré, no Centro de Artes da Maré), depois tem um biblioteca de três andares (a Biblioteca Lima Barreto), onde eu queria tirar férias para poder ficar lendo tudo que não li, e, mais para frente, um memorial, um muro imenso, bonito e doloroso, com azulejos em homenagem a pessoas que morreram de covid na Maré (na Rua Bittencourt Sampaio). Você vai ficando surpreendida. Ainda não consegui elaborar tudo que vivi ali”, relembra.

Realização fruto de parceria

Na prática, as melhorias no entorno dos colégios começaram a serem feitas para receber o caminhão-museu e, no embalo da revitalização, aconteceu o embelezamento da quadra, tudo previsto pela parceria da Redes com o Festival Agora, que aconteceu no Museu de Arte Moderna (MAM), em agosto, com o tema Mulheres da Independência.  A primeira artista a ser convidada pela coordenadora de Comunicação da Redes, a produtora Geisa Lino, foi Rita Wainer, que já havia colaborado com a Casa das Mulheres, e que rapidamente engajou sua mãe, a também artista Pinky Wainer. Foram dois dias de trabalho, com a criançada em volta, participando de tudo, como contou Pinky:

“O processo de fazer foi incrível. As crianças se aproximaram e tomaram posse da quadra através da pintura. Bonito demais. As crianças entenderam mil vezes melhor do que eu o que estava acontecendo naquele lugar. E, no final, liberamos os pinceis e as tintas e elas começaram a pintar o entorno, ruínas, pedaços de muro. Foi muito bonito e cheio de significados”.

Geisa destacou o fluxo novo de pessoas no espaço a partir da chegada do caminhão, que culminou na reaproximação das famílias que vivem na região, no dia do trabalho das artistas:

“Houve muitas visitas espontâneas ao caminhão-museu, inclusive de gente de fora da Maré porque foi o lugar escolhido para mostrar o projeto no Rio. Depois, com a pintura, as famílias começaram a reocupar a quadra e o espaço entorno, as crianças brincaram, pintaram e os mais velhos foram se sentar no gramado para ver a pintura.”

Edson Fernando Júnior, professor de educação física do Samora Machel, avaliou que a revitalização da quadra deu o primeiro passo para reaproximar a comunidade do espaço mas que agora é fundamental buscar novos parceiros para seguir com as transformações.

“Precisamos reformar a cobertura e comprar material esportivo, além de colocar balizas e rede de vôlei. Foi ótimo o que as artistas fizeram, reforçando a marcação no chão. Além disso, gostaríamos muito de usar a área de vestiário como abrigo, em caso de tiroteio. É importante ter um plano de ação devido à especificidade da região”, lembra o professor que espera contar com o apoio do comércio local para seguir com as melhorias.

O projeto a curto prazo é realizar amistosos entre os alunos dos dois Cieps e também programar uma copa de futebol até o fim do ano, inspirada na Copa do Mundo.

Violações de direitos marcam operação na Maré nesta segunda

Nas vésperas das eleições governamentais e presidenciais moradores da Maré lidam com o pânico e diversas violações

Por Redação, em 26/09/2022 às 16h32

A operação policial que começou na madrugada desta segunda-feira (26) nas favelas da Maré é marcada pela violação de direitos dos mareenses – e estava em curso até a publicação desta reportagem. Muitas residências foram invadidas pelos policiais, com depredação do patrimônio de moradores e sem mandado judicial. Uma das pessoas que morreram duraante a ação foi um comerciante de um evento que ocorre aos domingos na favela Vila do Pinheiro, onde a operação foi iniciada. Uma jovem que também estava presente no evento foi pisoteada durante a tentativa de saída do local e ficou com o rosto seriamente ferido. 

Por volta das 12h, uma casa na Baixa do Sapateiro foi invadida por integrantes do grupo civil armado do local e o proprietário foi mantido em cárcere. Pelo menos 14 pessoas ficaram dentro da residência por cerca de 2 horas até que se apresentaram aos agentes policiais que ocupavam a rua. Familiares que estavam em busca de informações foram impedidos de acessar o local e afastados com o uso de spray de pimenta pelos policiais. Os agentes também negaram a possibilidade do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) chegar até o local para prestar socorro.

A equipe do Maré de Direitos, projeto da Redes da Maré, esteve no local para articular uma mediação entre familiares e moradores com os agentes policiais. Após 2 horas de cárcere, 14 pessoas foram encaminhadas para a 21ª Delegacia da Polícia Militar e 3 para o Hospital Geral de Bonsucesso, um deles já tem óbito confirmado – um jovem de 14 anos, que foi atingido na porta de sua casa. A Assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar informou em nota que a operação segue em curso e 26 pessoas foram presas e 5 pessoas mortas.

Além das escolas e postos de saúde com funcionamento interrompido, organizações sociais como o Projeto Uerê – que pela segunda vez teve sua sede atingida durante a operação, Luta pela Paz, CEASM, Museu da Maré e outros também suspenderam ações e atendimento nesta segunda na Maré. A Linha Amarela foi bloqueada por um período e também houve tentativa de fechamento da Avenida Brasil, impedida por policiais. Outras regiões da cidade (Cidade Alta, Cinco Bocas, Pica Pau – Parada de Lucas, Brás de Pina e Vigário Geral, Guarabu – Ilha do Governador, Complexo da Serrinha – Madureira, Comunidades do São Carlos, Zinco, Mineira e Querosene – Complexo do São Carlos e Morro dos Macacos) também foram alvos de incursões policiais.

Segunda-feira, às vésperas das eleições, começa com operação policial na Maré

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Por Redação, em 26/09/2022 às 9h03

Ação já deixa 3 mortos, feridos e diversos danos ao patrimônio de moradores 

Ainda na madrugada desta segunda-feira (26) uma operação policial da Polícia Militar foi iniciada na favela Vila dos Pinheiros, na Maré. Um helicóptero, veículos blindados e homens do Batalhão de Operações Especiais (Bope) circulavam na favela já neste horário e intensas trocas de tiros foram relatadas por moradores da região. Além do Bope, a ação conta com policiais militares do Batalhão de Ações com Cães (BAC) e policiais civis da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core). De acordo com relatos de moradores e confirmação da Secretaria de Estado de Polícia Militar três pessoas foram mortas e uma pessoa foi ferida.

Por volta de 8h da manhã, a operação se estendeu para as favelas Vila do João, Salsa e Merengue, Morro do Timbau e Baixa do Sapateiro. Porém, em diversos pontos das demais favelas do conjunto é possível ouvir o som do helicóptero que permanece sobrevoando a região. A assessoria da PM informou em nota que a motivação da operação seria conter confrontos entre grupos civis armados locais. O fluxo na Linha Vermelha foi interrompido por Policiais militares do 22ºBPM (Maré) e do Batalhão de Policiamento em Vias Expressas (BPVE) por conta da ação.

35 unidades escolares da região da Maré estão sem funcionamento nesta segunda devido a operação – as unidades seguem prestando atendimento remoto de acordo com a Assessoria de Comunicação Social da Secretaria Municipal de Educação. Quatro unidades de saúde (Centro Municipal de Saúde Vila do João e as clínicas da família Augusto Boal, Adib Jatene e Jeremias Moraes da Silva)  também não funcionam esta manhã

São muitos os relatos de moradores sobre invasões de domicílios e depredação de veículos. A operação já descumpre duas importantes determinações da ADPF das Favelas: operações policiais devem acontecer após às 6h da manhã e é obrigatória a presença de ambulâncias para socorro a possíveis vítimas – até o momento não há identificação do veículo no território. 

Endividamento sufoca brasileiros

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Pesquisa mostra aumento das dívidas especialmente entre as mulheres, hoje maioria entre chefes de famílias

Por Hélio Euclides e Jorge Melo 

Não é assunto preferencial à mesa do jantar. As pessoas não gostam de falar sobre, como se tivessem culpa por não dar conta dos aumentos nos preços dos alimentos, do gás de cozinha, da gasolina, dos transportes, dos aluguéis… O segundo semestre de 2022 começou com recorde de endividamento e inadimplência entre a população brasileira: em julho, 78% tinha algum tipo de dívida, segundo a Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), realizada mensalmente pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).

Endividamento e inadimplência são duas palavras incômodas. Apenas 12% da população está livre delas; o restante luta diariamente para equilibrar o orçamento em meio a falta de dinheiro, contas atrasadas e juros do cartão de crédito virando uma bola de neve. O quadro não é nada animador para a maioria das famílias brasileiras. 

Victor Paulo Costa Paiva, 26 anos, é solteiro; seus dois filhos pequenos moram com os avós. Ele trabalha como ajudante de pedreiro e mecânico de motos, somando uma renda mensal de R$ 2 mil. A casa própria na Favela Marcílio Dias (Kelson’s) permite reduzir os gastos, já que não paga aluguel. Mesmo assim, gasta R$ 1.200 mensalmente somente com boletos e dívidas, como R$ 170 do telefone celular, R$ 70 com energia e o financiamento de uma motocicleta. “Não tenho contas atrasadas, mas peço dinheiro emprestado aos parentes e amigos, R$ 50, R$ 100, e vou administrando”, conta. 

Victor não tem cheque especial nem cartões de crédito: “Quando preciso, uso o do meu tio.” Ele conta que foi obrigado a fazer muitos cortes no orçamento doméstico e economizar no que é possível. Mesmo sem atrasar os pagamentos, Victor reconhece que é difícil fechar o mês. “De um ano para cá ficou mais difícil acertar as contas”, diz ele.  

Cuidado com os cartões de crédito

A proporção de inadimplentes chegou ao maior patamar em 12 anos: 29%. E 10,7% admitem que não têm condições de honrar os compromissos. A PEIC é realizada com 18 mil consumidores, distribuídos em todas as capitais do país e no Distrito Federal.

Os cartões de crédito representam a maior fatia das dívidas: 86,6%, segundo pesquisa do Serasa eCred divulgada em maio. Quase metade dos consumidores brasileiros (47%) tem quatro cartões de crédito ou mais. Em seguida, no rol das dívidas, vem os carnês, com 18,3%, e o financiamento de carros, com 10,8%. 

Os juros do cartão de crédito para pessoa física alcançaram 364% ao ano, o maior percentual desde agosto de 2017. Já os juros do parcelamento estão em 175,1% ao ano. Ou seja, utilizar cartões de crédito para tentar administrar as dívidas e contas é o pior dos caminhos.  

Dívidas são normais?

Segundo Ricardo Summa, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é normal que famílias tenham dívidas, na medida em que a aquisição de bens (como eletrodomésticos, carros e até a casa própria) exige financiamentos para a maioria da população. O problema é quando há desequilíbrio e as dívidas comprometem uma grande fatia da renda mensal. 

“A inflação dos alimentos foi muito alta e o salário real caiu. Para as famílias mais pobres, com renda de dois a cinco salários mínimos, o impacto foi muito forte”, explica o pesquisador. 

A Análise de Inadimplência Nacional de Pessoas Físicas, executada pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), estima que quatro em cada dez brasileiros estavam negativados em maio. São 62,37 milhões de pessoas. O Rio de Janeiro é o segundo estado com mais endividados: são 6,15 milhões, de uma população de 16 milhões. 

Como muitos trabalhadores, a vigilante patrimonial Simone Tavares Garcia, de 50 anos, foi demitida em novembro de 2020 e não conseguiu mais achar emprego fixo. “Tenho muitas contas atrasadas. É dívida em cima de dívida, e mais um empréstimo bancário que não consigo pagar”, conta.

Simone tem cinco filhos; quatro são casados. Ela vive com uma filha de 17 anos numa casa emprestada na Vila do Pinheiro e conta com o auxílio emergencial e cestas básicas doadas para se manter: “Cortei tudo que podia, mas gasto muito com remédios porque sou diabética.” O marido “faz o que pode”, segundo ela. E os filhos têm os seus próprios problemas para administrar e ajudam quando é possível. “O último ano foi um dos piores”, avalia Simone, preocupada.   

Momento de organizar e pagar os boletos é cada vez mais temido pelos brasileiros, é comum “sobrar mês no fim do salário” – Foto: Douglas Lopes

Conta não fecha

Em maio, cada consumidor negativado devia, em média, R$ 3.564,82. Quase quatro em cada dez consumidores (35,14%) tinham dívidas no valor de até R$ 500. E 50,32% deviam até R$ 1.000. A maior evolução das dívidas foi com o setor de bancos, com crescimento de 20,16%. O aumento da taxa de juros, que é usada para atualizar as dívidas, contribui para esse cenário. Os juros bancários chegaram a 38,1% ao ano em abril, maior valor em três anos, segundo o Banco Central. 

Ricardo Summa observa que houve um crescimento significativo de endividamento das famílias de menor renda. “Quando a família vai se endividando ela perde as melhores fontes de crédito (como o consignado) que têm taxas menores. Se atrasar os pagamentos, ela é obrigada a migrar para fontes de crédito mais caras como os cartões de crédito, empréstimos bancários e até mesmo fontes não legais, como agiotas”, afirma. 

Uma boa parte desse endividamento, de acordo com Ricardo, “é para pagar dívidas do passado ou para manter um mínimo padrão de vida, e não para comprar bens duráveis, como seria o normal e até desejável” numa economia capitalista, voltada para o consumo. 

Segundo ele, o aumento da taxa de juros vai trazer novos desafios. “Quem já estava endividado vai ter que pagar mais pelas dívidas passadas e quem se endividar agora vai enfrentar juros mais altos. Isso vai comprometer uma parcela ainda maior do orçamento familiar”, analisa.

Um levantamento da empresa Paschoalotto, especializada em recuperação de créditos (cobrança de devedores inadimplentes), revelou que 68% dos endividados têm entre 25 e 51 anos. A pesquisa da CNC, por sua vez, mostra que, em julho, o endividamento atingiu 77,5% entre os homens e 80,6% entre as mulheres — o aumento no número de mulheres chefes de famílias é uma das explicações para esses números. 

Para recuperar os créditos, a Paschoalotto analisa os perfis de milhares de devedores por mês. E, segundo os dados coletados, 76% dos endividados têm renda de até dez salários mínimos, ou seja, R$ 12 mil. 

Causas

A taxa de desemprego no país ficou em 9,8% no trimestre encerrado em maio, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).  Até esse mês, o país tinha 10,6 milhões de desempregados — pessoas de 14 anos ou mais que buscaram uma vaga no mercado de trabalho, sem sucesso. 

O avanço da informalidade é outro fator que aumenta a incerteza sobre a renda, atrapalhando a gestão das finanças pessoais. O número de trabalhadores informais atingiu o recorde de 39,3 milhões de pessoas no segundo trimestre de 2022, segundo a PNAD Contínua. 

Simone e Victor são bons exemplos. Ela, demitida em novembro de 2020, hoje vive de trabalhos informais. Desde a demissão não conseguiu nem emprego fixo nem equilibrar as contas, muito menos livrar-se das dívidas e da inadimplência. Victor tem dois trabalhos sem carteira assinada, sendo um temporário. Mas conseguiu manter a renda durante a pandemia fazendo entregas.