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Mortes em operações policiais voltam a subir no Rio; STF cobra medidas aprovadas em ‘ADPF das Favelas’

De acordo com dados do Instituto de Segurança Pública, 145 pessoas morreram em operações em outubro

Por Edu Carvalho em 26/11/2020 às 15h10
Editado por Dani Moura às 17h00

O Rio de Janeiro voltou a registrar crescimento de mortes em decorrência de operações policiais nas favelas. É o que aponta o Instituto de Segurança Pública do Rio, o ISP-RJ. De acordo com os dados apresentados pelo órgão, 145 pessoas foram mortas pela polícia no mês de outubro. 

A Rede de Observatório da Segurança indica o aumento de 179% das mortes por intervenção policial no Rio em outubro em relação a setembro, período que marca o tempo de governo de Cláudio Castro. O governador em exercício assumiu o cargo em 28 de agosto, substituindo Wilson Witzel, que enfrenta processo de impeachment. 

Esse número indica a volta da alta letalidade policial no estado, onde desde junho, vigora uma determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) que proíbe operações policiais em pandemias. (no plural, ou seja, em qualquer momento em que haja pandemia).

A Ação apelidada como “ADPF das Favelas”, a ADPF-635 (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) foi proposta pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro) e construída coletivamente com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Educafro, Justiça Global, Redes da Maré, Conectas Direitos Humanos, Movimento Negro Unificado, Iser, IDMJR, Coletivo Papo Reto, Coletivo Fala Akari, Rede de Comunidades e Movimento contra a Violência, Mães de Manguinhos, todas entidades e movimentos sociais reconhecidas como amici curiae no processo.

A ADPF das Favelas foi impetrada em novembro de 2019 pedindo que fossem reconhecidas e sanadas as graves violações ocasionadas pela política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro à população negra e pobre das periferias e favelas.

Desde junho, após decisão do ministro Edson Fachin, referendada em agosto pelo plenário do STF, as operações policiais no Rio foram suspensas durante a pandemia de covid-19, salvo em hipóteses absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente, com a comunicação imediata ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. A decisão do colegiado também pediu uma série de medidas que deveriam ser adotadas pelo Governo do Estado do Rio, com intuito de reduzir os impactos causados pela violência nesses locais. Nenhuma medida foi cumprida pelas autoridades fluminenses.

Segundo levantamento feito pela Defensoria Pública do Estado do Rio e de movimentos e coletivos da sociedade civil, entre os meses de agosto e outubro desde ano, em época de pandemia, houve ações policiais no Morro dos Macacos, Morro da Coroa, Jacarezinho e Manguinhos, Lins de Vasconcelos e Conjunto de favelas da Maré, todas na capital fluminense, além de Viradouro (Niterói), KM 32 (Nova Iguaçu) e Mangueirinha (Duque de Caxias). Isso enquanto o estado do Rio de Janeiro acumula mais de 340 mil casos de Covid-19 e 22.256 óbitos pela doença até o momento, segundo o Ministério da Saúde.

Diante desta situação, no dia seis de novembro, as entidades notificaram ao STF sobre o descumprimento sistemático das medidas, dentre elas a suspensão das operações policiais em tempos de pandemia. O pedido (leia na íntegra aqui) aconteceu após operação policial no na Maré, realizada em 27 de outubro, em que uma jovem grávida de quatro meses perdeu o bebê depois de ser atingida por disparo. De acordo com apuração da Redes da Maré, divulgada aqui no Maré de Notícias, a partir dos relatos de vizinhos, não havia confronto no momento em que a jovem foi alvejada. Ela estava na porta de sua casa e foi socorrida pelos próprios moradores. Os agentes policiais responsáveis pela ação, segundo a apuração, recolheram as cápsulas e limparam as manchas de sangue, descumprindo determinação do STF que exigia preservação da cena do crime.

“Pretende-se, antes, conferir a esta Corte a dimensão da gravidade deste cenário de recrudescimento explícito da política de confronto armado, com consequências imensuráveis para a população negra, desproporcionalmente exposta à violência de estado”.

Entidades em petição encaminhada ao Supremo.

Nesta quinta-feira, 26 de novembro, em seu despacho, Fachin pede o cumprimento da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos relativas ao estabelecimento de metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial, a serem verificadas pelo Judiciário e Ministério Público do Estado, além do Conselho Nacional do Ministério Público. 

As organizações da sociedade civil envolvidas na ação judicial estão se mobilizando para a criação de uma campanha de comunicação para pressionar o Governador do Estado do Rio, ao cumprimento das medidas de segurança já deferidas pelo STF.

Da Maré até a prefeitura do Rio

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Em artigo especial ao Maré de Notícias, deputada que é cria do Conjunto de Favelas reflete sobre sua candidatura para o cargo de prefeita 

Por Renata Souza, em 26/11/2020 ás 10h

Editado por Edu Carvalho 

Sou cria da favela da Maré, mulher preta e doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É assim que gosto de me apresentar em tudo que faço. Hoje sou deputada estadual, presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Alerj e fui candidata a prefeita do Rio pelo PSOL-RJ. Uma cria da Maré que disputa os espaços de poder e decisão política nesta cidade que nega direitos e oportunidades à favela. Um desafio gigante. Mas é hora da favela ter voz e vez, por isso, sigo de cabeça e punho erguidos em defesa dos trabalhadores do Rio. 

Fazer uma campanha para disputar as eleições para a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro foi uma tarefa árdua e cansativa. Mas chego ao fim dessa jornada com a certeza de que a luta por uma cidade mais humana, mais justa e menos desigual só será vencida com muito debate político. Neste ano de 2020, com a pandemia da Covid-19 e a má vontade da mídia em disponibilizar espaços de debates, não houve condições de igualdade para candidaturas como a minha, pequena e pouco conhecida. 

Não foi fácil já no evento virtual de pré-lançamento da campanha, onde fomos atacados por hackers. O prefeito Marcelo Crivella não se sentiu constrangido em dizer mentiras sobre mim e meu partido, ao vivo, no debate da Band. Fui atingida por uma decisão judicial que impediu que a imprensa registrasse o momento do meu voto no Ciep Elis Regina, na Maré, coisa que não aconteceu com nenhum dos outros candidatos. Será porque eu era a única candidata a votar na favela? 

Em minha vivência de mais de 15 anos na política institucional, trabalhei com Marcelo Freixo e fui chefe de gabinete da Marielle Franco, covardemente assassinada, e que me ensinou que embora o resultado nas urnas seja soberano, a disputa eleitoral aponta para futuros possíveis. Na resposta que veio das urnas na Zona 161, onde voto juntos dos moradores da Maré, de Bonsucesso e Ramos, chegamos a quase 9% dos nossos votos. Isso é uma vitória, já que dificilmente votamos em uma referência da própria Maré. 

Aqui sigo cumprindo a missão que me foi confiada por 63.937 eleitores em 2018, que me fizeram a deputada estadual mais votada da esquerda. O Rio de Janeiro não pode seguir sendo o estado que naturaliza os índices absurdos de feminicídio, homicídio, de encarceramento, de violência obstétrica, de salários e trabalhos subumanos da população negra.  

Me sinto muito honrada por ter sido escolhida pelo Partido Socialismo e Liberdade para representar a legenda no difícil pleito de 2020, agradeço aos companheiros pelo apoio, a minha equipe aguerrida, agradeço aos 85.271 eleitores .Sonho, esperança e luta moveram a ampliação da nossa bancada na Câmara do Rio para sete pessoas. Seguimos, com brilho nos olhos e a certeza de que somos necessários nos espaços de poder e decisão política. 

Gratidão à Maré.

Renata Souza é nascida e criada na Favela da Maré. Jornalista, formada com bolsa integral, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-doutora em Mídia e Cotidiano pela Universidade Federal Fluminense. Eleita em 2018 deputada estadual no Rio pelo PSOL, foi a primeira mulher negra presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da ALERJ.

O fenômeno do podcast alcança favelas e periferias pelo WhatsApp

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Por Thaís Cavalcante em 25/11/2020 às 19h30

Editado por Edu Carvalho 

“Hoje vamos falar sobre o que fazem os prefeitos, as vereadoras e os vereadores de uma cidade. Também porque é importante pensarmos com calma antes de escolhê-los para nos representar”. O trecho com a fala de Eliana Sousa, diretora da Redes da Maré, faz parte do episódio sobre eleições e saúde pública do podcastMaré em Tempos de Coronavírus”. É assim que as favelas e periferias tem feito durante a pandemia, encontrando novas formas de compartilhar informações com os moradores.

O Deezer, serviço de streaming de áudio, fez um levantamento mostrando que os programas de áudio sob demanda cresceram 67% no país durante o período de isolamento social. Com maior procura, os comunicadores locais entenderam que era a hora de produzir, compartilhar esses conteúdos onde a população está em peso: no WhatsApp. O programa também está disponível no Spotify e pode ser ouvido nas ruas, pois a cada 15 dias, Eliana Sousa deixa um pen drive com o programa tocando em um bar muito frequentado. Uma ação de estratégica de alcance.

“Acho que o podcast tem tudo para ser o novo rádio dos jovens de periferia, considerando as camadas de acesso desses jovens também. Minimamente, a gente precisa de um recurso que ainda não é democrático para o acesso do podcast, que é a internet nas favelas”, afirma Jéssica Pires, jornalista da Redes e comunicadora do Coletivo de Audiovisual AMaréVê. 

Ela que participa da equipe de reportagem do podcast, acredita que a produção foi uma necessidade no período de pandemia. “Considerando que a tentativa de democratizar o acesso as informações são necessárias e envolvem a nossa saúde, é importante pensar em todas as possibilidades e formatos que possam romper barreiras e a informação chegue ao morador”.

Zapcast: tendência X necessidade

Gilson Jorge, estudante de História da Arte e morador da Nova Holanda, na Maré, é um dos criadores do podcast Nerd de Favela, junto ao Henrique Gomes e Mari Rodrigues, moradores do território. O programa de áudio que aborda o mundo dos gamers e da cultura pop também surgiu durante a pandemia e já possui três episódios publicados no Spotify e compartilhados nas redes. “Demais falar de coisas de nerd dentro da favela. São nossas experiências enquanto favelados curtindo essas coisas do mundo nerd e uma outra relação de consumo, que é lidar com a escassez de recursos”, diz.

Assim como os jovens nerds, outros comunicadores do território e organizações sociais têm apostado no formato. O Maré de Notícias mapeou pelo menos 10 programas de áudio  criados localmente e divulgados em distribuidores de streaming, grupos e listas no WhatsApp: Maré em Tempos de Coronavírus; Nerd de Favela; Renegadus; Data_lábia; Cabe Mais 1; Unifacast; Favela Pod; Coronavírus na Maré e cadê o poder público?; Itan e Crônicas de um favelado. No final desta matéria você vai conferir cada um.

Jéssica conta que essa atitude tem motivo. “O podcast hoje é um formato que está crescendo muito, por conta dessa facilidade de produção. A gente consegue gravar pelo celular, editar em programas gratuitos, se comunicar com as fontes pelo próprio WhatsApp e não nos exige uma dinâmica que envolva muitos processos ou pessoas”.

Ainda que o áudio não exija muitos recursos, o processo de produção é sempre cuidadoso, para que a cada semana ou quinzena, ele esteja disponível ao ouvinte. E conta como funciona: primeiro, as pautas são pensadas a partir da demanda da população da Maré; a partir disso é escrito o roteiro do programa; reportagem com dados; entrevistas com especialistas e moradores; gravação e, por fim, é feita a edição.

“Compartilhar o podcast pelo WhatsApp é uma forma de democratizar um pouco mais o acesso à informação, um jeito de alcançar a juventude e pessoas mais velhas”

Jéssica Pires, jornalista da Redes da Maré.

Favelas e periferias na mesma sintonia

Nas periferias de São Paulo, os comunicadores e jornalistas passaram a produzir podcasts, assim como no Conjunto de favelas da Maré, durante o período de isolamento social. Podemos citar: Manda Notícias; Em Quarentena; Quarentena Periférica; Papo Reto; Quebra das ideias; Papo de Quebrada; Lugar de Quarentena; QuebraDev entre outros programas que merecem acompanhamento.

Gisele Alexandre, moradora do Capão Redondo, na periferia de SP, é jornalista na Agência Mural e idealizadora do podcast Manda Notícias. Com oito meses  de programa, ela coleciona mais de 60 episódios, iniciados a partir da articulação da rede #CoronaNasPeriferias. Gisele conversou com amigos para ver como poderia criar um programa com as ferramentas que tinha em casa. Inicialmente, seu programa só chegava no WhatsApp.

“Apesar da gente estar falando de um formato em podcast que tem como raiz as plataformas digitais, o meu é o conhecido zapcast, que tem como prioridade alcançar pessoas que não estão no Spotify ou Deezer.” Para Gisele, o alcance vem primeiro. “O público que a gente é acostumado a falar não tem o hábito de ouvir podcast. A gente deu início a uma nova cultura de comunicação e se apropriar do WhatsApp pra levar conteúdo informativo de qualidade é uma dessas missões”. No início começou sozinha, aos finais de semana. Hoje, conta com uma equipe e três listas de transmissão com 600 pessoas.

Aline Rodrigues, moradora da zona sul de São Paulo e jornalista da Periferia em Movimento, com o programa ‘’Quebra das Ideias’’ também acredita no movimento que vai além dos aplicativos de áudio. Ela já percebe um retorno positivo do trabalho. “O podcast chegou nos grupos de família e em lugares que antes a gente não chegava. Recebemos também muitas mensagens de pessoas agradecendo a informação de fácil acesso e dicas de cuidado durante a pandemia, por exemplo. Pessoas que não sabiam ler e foram informadas também”, conta.

Acompanhe 10 podcasts feitos por moradores e organizações da Maré, no Rio de Janeiro:

Maré em Tempos de Coronavírus

Fique por dentro do que rola nas 16 favelas da Maré e o que a Redes tem produzido no território. Clique na imagem e ouça.

Nerd de Favela

Sobre cultura pop e as vivências de jovens na favela e a relação com o consumo desta cultura.

Renegadus

Discute favela, política e cultura a partir de uma visão periférica, sempre dando o papo reto.

Data_lábia

Sobre favelas, seus moradores e o levantamento de problemas e soluções sociais.

Cabe Mais 1

Fala de literatura e cotidiano, dentro e fora dos livros. Traz o intercâmbio entre Brasil e Alemanha. 

Unifacast

Educação popular e políticas públicas, para uma rede de conhecimento, afeto e transformação.

Favela Pod

Programa do Observatório de Favelas, organização de pesquisa, consultoria e ação pública.

itan

Mitos, contos tradicionais de países africanos e afro-latinos e próprias crônicas familiares reais.

Crônicas de um favelado

Trajetória de um ator social que traz relatos sensíveis, com drama, emoção e sensibilidade.

Coronavírus na Maré e cadê o poder público? 

Sobre um universitário favelado, a pandemia e a falta do poder público no território.

Um Pacto Entre as Organizações do Movimento Negro Brasileiro: A Coalizão Negra Por Direitos

Por Tatiana Lima especial para o Rioonwatch
Publicado em 25/11/20 às 15h40


Esta é a primeira de três reportagens sobre a Coalizão Negra por Direitos. No Mês da Consciência Negra, a série traz à luz mais um enfrentamento ao racismo protagonizado pelo movimento negro organizado.

“A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora. Uma pessoa negra que tem consciência de sua negritude está na luta contra o racismo.” – Lélia Gonzalez

Se a população negra é maioria no país—quase 54% entre pretos e pardos, segundo o IBGE, o que torna o Brasil a segunda maior nação negra, após só a Nigéria—por que a população negra não ocupa espaços de poder? Por que o movimento negro organizado brasileiro não é considerado uma voz a ser ouvida para a construção e ação de um projeto de país? Por que somente 17,8% dos parlamentares no Congresso Nacional são negros e pardos?

A reposta está no racismo estrutural e secular presente na sociedade brasileira, que, mesmo diante de uma democracia instaurada, não garante o acesso a direitos à maioria da sua população, que é negra.

“Estamos em um país que a gente tem que disputar. Não é nenhuma disputa de narrativa. A gente não vive em uma democracia: pois sendo a democracia o exercício de ouvir a maioria, e tendo uma maioria que nunca foi ouvida [a população negra], é óbvio que não vivemos em uma democracia”, diz Douglas Belchior, 41, cofundador da UNEafro Brasil, uma das 150 entidades que formam a Coalizão Negra por Direitos, autora do manifesto “Enquanto Houver Racismo Não haverá Democracia“. 

Douglas Belchior, cofundador da UNeafroBrasil. Foto: Divulgação

“Se pensarmos na democracia como sendo uma dinâmica social de garantia de direito ao cidadão, também não vivemos em uma democracia, pois a maior parte da população nunca teve seus direitos plenos e cidadania respeitados. Nós do movimento negro sempre percebemos isso, porque isso é óbvio na nossa vida e no nosso corpo”, afirma Douglas. A Coalizão Negra por Direitos exige no manifesto “a erradicação do racismo como prática genocida contra a população negra”.

Com 46 documentos públicos que disputam um projeto político para o país, a partir da perspectiva do movimento negro organizado incluindo toda a população brasileira—negros, pardos, brancos e indígenas—a Coalizão Negra Por Direitos existe há quase dois anos, representando diferentes vozes do movimento negro organizado: mulheres negras, pessoas faveladas, periféricas, LGBTQIA+, pretos e pretas católicos, evangélicos, de religiões de matriz africana, quilombolas, com distintas confissões de fé, povos do campo, das águas e da floresta, trabalhadores explorados, informais e desempregados, todos em coalizão num pacto contra as consequências práticas do racismo estrutural no Brasil.

Banner de campanha da Coalização Negra por Direitos em garantia das políticas afirmativas.
Banner da campanha Coalização Negra por Direitos

“A coalizão não é só uma organização e não será. Ela é um exercício de caminhada conjunta. Só existe na ação coletiva que a gente promove. Ela não tem um escritório, não tem uma sede e isso não está no horizonte. O que existe é a ação política conjunta do movimento”, explica Douglas. A Coalizão Negra por Direitos vem atuando contra o racismo, a violação do direito à vida, denunciando violações de direitos humanos no Brasil.

No momento que o país chegou em 100.000 mortes por Covid-19 a Coalizão Negra por Direitos, protocolou o 56º pedido de impeachment contra Jair Bolsonaro, em 12 de agosto, contendo 11 denúncias contra o presidente. O documento tem a assinatura de 150 organizações que compõem o grupo, com apoio de mais outras 600 entidades, além da adesão de artistas, intelectuais e ativistas. Três meses passados, o Brasil está perto de atingir 167.455 mortos (em 19/11) pela pandemia, que apresenta uma tendência de alta, o que pode ser um indicativo do início de uma segunda onda de infecções por coronavírus no país. 

Encontro Internacional da Coalizão Negra por Direitos – São Paulo – Novembro de 2019

“O Brasil se vê diante de um espelho que evidencia suas mazelas. E o único contraponto de esperança possível a este rosto branco, velho, rico, heterossexual e cisgênero, que ocupa o topo da pirâmide social e majoritariamente os espaços de poder, está na potência transformadora de mulheres, homens, jovens e LGBTQI+, favelados e periféricos, aquilombados e ribeirinhos, encarcerados e em situação de rua, negras e negros, que formam a maioria do povo brasileiro”.

declara a Coalizão na plataforma de princípios e agenda, datada de 28 de novembro de 2019. 

Diante da violência policial no Brasil, que mata negros a cada 23 minutos—de acordo com o relatório final da CPI do Senado sobre o Assassinato de Jovens baseado nos dados do Mapa da Violência—a Coalizão denuncia há meses que, enquanto houver racismo, não haverá democracia. “Há setores na sociedade que guardaram distância dessa realidade a vida inteira e que não é óbvio nada disso para eles… que essa democracia não é realidade para a maioria. E isso eu falo até incluindo o campo progressista que estão preocupados com a realidade de uma maneira mais geral”, ressalta Douglas. 

Genocídio Negro: 75% dos assassinatos no Brasil

Ágatha Felix e sua mãe Vanessa Francisco Foto: Divulgação

Agatha FelixEduardo de JesusMaria EduardaJonathan OliveiraMaicon de SouzaJoão PedroJoão VitorIago CesarRodrigo CerqueiraCarlos Alberto, Carlos Magno, Everson Gonçalves, Thiago da CostaViviane Rocha, Cristiane Souza Leite, Rosana Lima de Souza. O que todos esses nomes têm em comum? Todas essas pessoas foram assassinadas em ações policiais nas favelas no Rio de Janeiro e fazem parte da estatística do genocídio negro brasileiro.

Das pessoas assassinadas no país, 75,5% são negras, segundo o Atlas da Violência. Pesquisa da Rio de Paz, mostrou que entre 2016 e 2019, 91% das crianças mortas por “balas perdidas” no Rio de Janeiro, eram negras. 

GENOCÍDIO é o extermínio deliberado de pessoas motivado por diferenças étnicas, nacionais, raciais, religiosas e, por vezes, sociopolíticas. No Brasil, ele é resultado do racismo que molda o Estado e a sociedade, que afeta a polícia, as empresas, as instituições políticas e a população como um todo”.

conforme denuncia a campanha da Coalizão.
Crianças Negras como Alvos do Genocídio.

Na conta do genocídio negro brasileiro, também estão as vidas negras interrompidas todos os dias no xadrez da política de morte da falta de acesso a direitos e que sequer sabemos seus nomes. Realidade escancarada pelas desigualdades econômicas e sociais da pandemia do coronavírus. Enquanto os jornais pediam para a população higienizar as mãos, a população nas favelas, em sua maioria negra, denunciava a falta de acesso à água ou condições de manter-se isolada, para prevenir o contágio da doença. 

“O Brasil é um país em dívida com a população negra–dívidas históricas e atuais. Portanto, qualquer projeto ou articulação por democracia no país exige o firme e real compromisso de enfrentamento ao racismo. Convocamos os setores democráticos da sociedade brasileira, as instituições e pessoas que hoje demonstram comoção com as mazelas do racismo e se afirmam antirracistas: sejam coerentes. Pratiquem o que discursam. Unam-se a nós neste manifesto, às nossas iniciativas históricas e permanentes de resistências e às propostas que defendemos como forma de construir a democracia, organizada em nosso programa”, diz o manifesto Enquanto Houver racismo Não Haverá Democracia.

Lançado em junho deste ano em meio ao contexto do crescimento da luta antirracista em todo o mundo, após o assassinato do norte-americano George Floyd, por um policial branco com joelhos em seu pescoço, o manifesto organizado pela Coalizão conta com a assinatura de artistas, intelectuais, ativistas e figuras públicas, além de outras 150 instituições do movimento negro, entre elas: Uneafro, Criola, Movimento MolequeJustiça GlobalRede Contra a ViolênciaVoz da Baixada e Instituto Marielle Franco.

“A elite mais conservadora sabe que a democracia não existe para todos e que o sistema é de opressão ao povo negro, mas mantém essa lógica de uma maneira pré-determinada e pensada como um projeto. O nosso manifesto é uma reivindicação do óbvio porque na realidade brasileira o óbvio precisa ser defendido. É por isso que a gente se colocou de forma tão contundente, em coalizão, para cobrar coerência daqueles que dizem se preocupar com a democracia, porque quem se preocupa com a democracia precisa se preocupar com o racismo que impede o exercício da democracia objetivamente”, opina Douglas, uma das vozes da Coalizão Negra Por Direitos, que tem 46 grupos de WhatsApp em atividade. 

O interesse de busca sobre “a persistência do racismo no Brasil”, segundo a plataforma Google, cresceu mais de 5000% de 2019 para 2020. Também de acordo com a plataforma, a palavra “privilégio” atingiu o maior interesse de buscas de todos os tempos em junho de 2020, seguida pela busca sobre “o que é racismo?”, que teve a maior alta de buscas dos últimos cinco anos. Ainda, o número de pesquisas relacionadas ao tema “Vidas Negras Importam”, “Vidas Pretas Importam”, “o que é Black Lives Matter”, “tradução Black Lives Matter”, foi maior do que nunca. Os dados fazem parte de um levantamento da empresa no Google Trends.

Mediante a estes números e os escândalos de racismo internacional dos EUA, o Google lançou o filme “Buscando por Justiça Racial” e uma carta-compromisso em que se compromete a combater o racismo dentro da própria empresa.

A Coalizão Negra vem atuando há dois anos em resposta à aceleração da retirada de direitos pelo atual governo federal. Não são novidades a mobilização e as articulações nacionais do movimento negro. Em momentos chave da história, surgiram o Movimento Negro Unificado, a Frente Negra Brasileira em 1978, o Movimento Pró-Constituinte em 1988, a Marcha Zumbi dos Palmares em 1995, e a Marcha das Mulheres Negras em 2015.

“Em momentos chaves de grandes crises e viradas de páginas, o movimento negro se articula nacionalmente. A eleição do Bolsonaro deflagra um momento crucial, pois já imaginávamos que o governo Bolsonaro seria cruel com a população negra como se confirmou logo nos primeiros meses de governo dele”, explica Douglas. O primeiro encontro da Coalizão Negra aconteceu em novembro de 2019, na ocupação Nove de Julho, onde mais de 100 pessoas compareceram representando dezenas de coletivos e instituições do movimento negro organizado.


O Racismo Velado na Criminalização do Funk

Por Ingra Maciel, especial para o RioonWatch em 24/11/2020
Postado em 25/11/2020 às 14h30


Esta é a primeira de duas reportagens sobre a criminalização do funk. No Mês da Consciência Negra, esta matéria discorre sobre uma das formas de opressão à cultura negra favelada. 

O Judiciário e a Criminalização dos Funkeiros

“Deixa a favela vencer brilha e não tenta destruir isso!!” e “Errei, paguei por isso, dei a volta por cima e hoje estou no topo. Topo, onde o favelado nunca pode chegar, porque, se chega, é bandido”, são trechos escritos no perfil do Twitter e Facebook de Marlon Couto da Silva, 20 anos, o MC Poze do Rodo, também conhecido como Pitbull do Funk, logo após ter denúncia do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) contra ele aceita pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) por associação ao tráfico, apologia ao crime e corrupção de menores e sua prisão preventiva decretada.

A relação do cantor com o judiciário intensificou-se a partir de setembro de 2019. O MC Poze, junto com outras cinco pessoas, foi preso na cidade de Sorriso, no estado do Mato Grosso, e depois transferido para o Presídio Pascoal Ramos, em Cuiabá, em 28 de setembro de 2019, como forma de resguardar a ordem pública. Poze, que estava realizando um show na cidade, foi preso em um hotel com outras duas pessoas de sua equipe. De acordo com o poder judiciário local, o cantor foi indiciado inicialmente por uma medida temporária transformada em preventiva, aceita pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso, pelas seguintes alegações: “tráfico de drogas, organização criminosa, associação ao tráfico, incitação ao crime, apologia ao crime, corrupção de menores e fornecimento de bebidas alcoólicas a menores”.

A polícia matogrossense prendeu o músico em uma festa onde o cantor se apresentaria. Na festa, segundo a Polícia Militar do Mato Grosso, foram apreendidas pequenas quantidades de maconha, cocaína e havia muito álcool. Havia entre 39 e 43 adolescentes no local. Os ingressos do show foram apreendidos. Os policiais não deixaram claro se, o que ou qual a quantidade, de que substância ilícita foi apreendida com o MC. Assim mesmo, Poze e mais cinco pessoas foram presas, sob as mesmas acusações, ignorando-se o princípio da individualização da pena.

Material apreendido pela polícia matogrossense num baile funk. Foto: PM de Mato Grosso

A defesa do funkeiro de Santa CruzZona Oeste do Rio de Janeiro, alegou, no pedido de habeas corpus, que a prisão do MC se tratava de um exemplo de criminalização do funk, da favela e da classe artística periférica e favelada. O posicionamento da defesa de MC Poze—e de inúmeros outros funkeiros—é o mesmo da Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito da OAB-RJ, que produziu um relatório expondo o racismo que estrutura a criminalização da cultura favelada, como um dos legados da escravidão, passando pela capoeira, pelo samba, jongo, rap e funk. Este argumento foi acatado e, por decisão judicial, o cantor foi posto em liberdade.

A juíza acatou o argumento da defesa de Poze, alegando que a medida em vigor era “desproporcional” e “exagerada”, e que o investigado deveria ter seu direito à defesa e à liberdade garantidos. Como consta nos autos: “A prisão preventiva, de acordo com interpretação comprometida com o perfil constitucional, é medida extrema e somente pode ser decretada se evidenciada sua rigorosa imprescindibilidade, lastreada em motivos concretos indicativos da necessidade da segregação”.

O cenário no qual Poze esteve inserido não é novidade para os funkeiros cariocas. Outros artistas do movimento funk já tiveram sua prisão decretada, materiais de trabalho apreendidos ou até mesmo o fechamento de bailes funk e a interdição de clubes e espaços de festas, shows e eventos. A década de 1990 na cidade do Rio de Janeiro foi muito marcada por esses efeitos da criminalização do movimento funk, os donos das principais equipes de som da época, ZZ produções, e Rômulo Costa da Furacão 2000, foram indiciados e presos. Paralelamente a perseguição e prisão dos líderes deste movimento artístico, houve o fechamento de aproximadamente 30 bailes funk em todo o estado do Rio de Janeiro, graças a uma CPI que investigava o funk.

Stories publicado por MC Poze do Rodo. Foto: Instagram/@mcpozedorodo.

MC Poze, o jovem funkeiro com quatro milhões de seguidores nas redes sociais, que foi criado na Favela do Rola ou do Rollas (também conhecida como favela do Rodo) em Santa Cruz, leva a música como instrumento de profissão. Em julho de 2020, teve mais uma vez sua vida estampada em noticiários com acusações feitas pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, alegando que o cantor teria envolvimento com o tráfico de drogas e participação na facção Comando Vermelho (CV).

Por ele ter assumido, em depoimento, já ter feito parte do varejo de drogas quando vivia na Favela do Rola, entre os anos de 2015 e 2016, em novo inquérito, o Ministério Público alega que o cantor faz parte da facção criminosa por ter feito, em março de 2020, um show na favela do Jacarezinho, onde havia uma comemoração de um homem ligado ao Comando Vermelho. No entanto, Poze e sua defesa informam que, na mesma noite, o MC fez outros shows, em locais distintos, até mesmo de outras facções, o que desacredita a teoria de que ele teria envolvimento com o Comando Vermelho por ter feito show no Jacarezinho.

Narrativas estigmatizantes, como essas, colaboram com a criminalização da cultura funkeira e da juventude favelada. São parte do quebra-cabeças que associam a juventude funkeira à violência e ao varejo de drogas no Rio de Janeiro e em outras cidades do Brasil. O que Poze do Rodo vive em relação ao judiciário brasileiro, não é cenário novo para aqueles que optaram pelo funk como fonte de renda ou de lazer. Não à toa a década de 1990 ficou marcada pela associação dos famosos arrastões nas praias do Rio com a juventude preta, funkeira e favelada, onde diversos estereótipos foram sendo construídos em cima dos jovens de favelas e periferias. As décadas de 1990 e de 2000 foram de bastante interferência pública, policial, no movimento funk carioca, assim como no rap paulista.

Investigações, denúncias, indiciamentos e prisões de artistas, além da proibição de eventos culturais de funk na favela foram se tornando cada vez mais comuns, virando normais. Esse movimento contra o funk chegou a tal ponto que o Poder Legislativo chegou a discutir duas propostas que legislam sobre o funk. Uma queria proibir o funk nacionalmente e foi proposta, em 2017, ao Senado Federal através de uma sugestão popular de discussão legislativa, sob a justificativa que o funk seria um “crime de saúde pública, contra a criança, os adolescentes e a família”. Já a outra iniciativa legislativa visava reconhecer o funk como patrimônio cultural carioca, na ALERJ, em 2009. A primeira foi rechaçada e a segunda aprovada. Mas o racismo estrutural se reconfigura e continua seu império.

Quadrinho sobre a tentativa de criminalização do funk no Senado Federa. Arte por Raphael Salimenaa/BBC.

Os Últimos 20 Anos no Movimento Funk

Nos últimos 20 anos, por vezes, profissionais do funk foram presos, sob alegações de envolvimento com o tráfico de drogas e apologia às drogas, ao tráfico e às armas, só por retratarem a realidade das favelas e periferias de todo o Brasil, partindo de uma suposta liberdade de expressão que a todos seria garantida.

Decisões bastante simbólicas do judiciário sobre a cultura funk, no entanto, indicam o contrário. Casos emblemáticos, com os mesmos tipos repetidos de abuso de autoridade e de acusações infundadas, abundam na cena funk carioca. São exemplos dessa criminalização, os casos dos funkeiros Rômulo Costa, MC Colibri, MC Sapão, MC Galo e muitos outros. Na maioria destes casos as supostas ligações com o tráfico ou não foram comprovadas cabalmente, ou foram comprovadas de maneira duvidosa ou insuficiente. Alguns, como o MC Sapão, foram libertados, depois de meses na cadeia, por falta de provas ou pela fragilidade do conjunto probatório. Ao passo que outros ficaram encarcerados por anos, como o MC Colibri.

No entanto, em resposta a essa repressão direcionada, há a solidariedade da cena funk. Apesar de muito preconceito com quem cumpriu tempo na cadeia, há aqueles que passaram pela mesma situação, pelo mesmo cárcere e tentam ajudar. Diz MC Colibri: “Assim que saí da prisão MC Marcinho fez um funk para mim. Mas de lá para cá, só encontrei portas fechadas. Estava difícil um DJ que quisesse mostrar o meu trabalho, alguém que quisesse contratar um homem que já esteve preso”.

Em 25 de novembro de 2010, esse quadro muda de figura com a política de pacificação. A invasão e a ocupação dos complexos da Penha e do Alemão por tropas militares, com forte aval midiático, inauguraria uma nova era da política de segurança carioca. Política do ex-governador Sérgio Cabral, hoje preso por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, as UPPs foram lançadas sob a proposta de que exterminariam o tráfico de drogas armado em algumas favelas da cidade.

Segundo a retórica oficial, junto aos tanques e às balas subiam o morro a democracia e a liberdade. Só na retórica, pois dias depois da ocupação dos complexos do Alemão e da Penha, pelas tropas das Forças Armadas e das polícias, a investida contra a cultura da favela se intensificou: os MC Tikão, MC Frank, MC Dido e MC Smith, bastante conhecidos na cena funk, foram presos. A justificativa: por cantarem e comporem suas próprias letras de funk, narrando a realidade e a memória histórica das favelas do Rio de Janeiro, em músicas conhecidas como os “proibidões“. Até no momento da prisão, na delegacia, cantaram. Liberdade de expressão e de produção artística, alguns diriam, mas no entanto, foram presos.

Não seria dessa vez que a democracia e a liberdade subiriam o morro. Poder ser preso, como foi MC Dido, cria do Morro do Borel, por cantar frases como: “UPP [xingamento], sai do Borel!” não é liberdade. No máximo, uma deselegante crítica política, mas ainda assim plenamente garantida pela Constituição Federal do Brasil.

MC Tikão, MC Frank, MC Dido e MC Smith foram acusados pela Polícia Civil por crimes como incitação ao crime, associação ao tráfico, apologia ao crime, formação de quadrilha e outros. No ato da prisão dos cantores, a delegada de polícia chegou inclusive a acusar os funkeiros de fazerem parte da facção Comando Vermelho, que dominava o Complexo do Alemão na época da ocupação de 2010. Em entrevista, a delegada Sardenberg, responsável pela maior parte destas prisões, disse que “o tráfico tem sua voz” e que os MCs são como quaisquer outros funcionários do tráfico. A mídia e a própria polícia diziam não serem “contra o funk: o funk do bem”. Julgamento moral muito criticado, inclusive dentro da própria Polícia Civil.

A prisão dos funkeiros é parte de uma longa história de criminalização da cultura negra favelada e de negação de cultura legítima aos gêneros musicais pretos, de favela e periféricos. Após ampla visibilidade dos casos e ação de advogados, os MCs foram soltos por medida de habeas corpus do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

A chegada das UPPs nas favelas evidenciava uma onda anti-funk e anticultura favelada, em termos mais amplos. Nessa trajetória, diversos meios culturais das favelas ocupados passaram a ser cerceados pelas UPPs, que se usavam de uma resolução, da Secretaria de Segurança para o impedimento das expressões artísticas e culturais nas favelas onde haviam sido instaladas UPPs. Em algumas localidades sob controle das UPPs, por exemplo a Chatuba da Penha, os bailes foram sendo proibidos com determinação da Resolução 013, que se tratava de uma norma do decreto 39.355/2006 atualizada em 2007. O decreto informava que qualquer evento artístico, social e esportivo no Estado do Rio de Janeiro deveria ter autorização do Comandante do Corpo de Bombeiros (CBMERJ), Secretaria de Estado da Defesa Civil (SEDEC), do Comandante do Batalhão local de Polícia Militar (PMERJ) e do delegado titular da Unidade de Polícia Administrativa e Judiciária (UPAJ), da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro.

Em vista disso, as favelas e periferias que tinham UPPs tiveram seus bailes funks silenciados uma vez que os comandantes das UPPs não concediam a autorização para realização das festas, apesar da Constituição Federal de 1988, que eliminou qualquer forma de censura artística e de limitação ao direito de reunião por qualquer autoridade de qualquer nível hierárquico.

Cerca de nove anos depois, casos de perseguição e criminalização aos profissionais do funk não mudaram. Em 2019, o DJ Rennan da Penha foi denunciado pela Polícia Civil por atuar na organização criminosa como “olheiro” ou “atividade”, por relatar nas redes sociais, segundo o judiciário, a movimentação de policiais na favela da Penha.

Ao ser entrevistado no dia 12 de dezembro, no programa Conversa com Bial, na Rede Globo, o cantor Rennan da Penha diz: “Viajei para o Egito, México, alguns países, ia fazer turnê na Europa, Estados Unidos. Do nada, tiraram tudo de mim. O que aconteceu poderia ter acabado não só com minha vida, mas com a minha carreira por completo. Tenho onze anos de funk, lutei muito para chegar onde cheguei”.

O DJ Rennan da Penha permaneceu preso por cerca de sete meses, justamente no momento em que sua carreira estava sendo alavancada e ganhando cada vez mais notoriedade dentro e fora do Complexo da Penha e em todo território nacional. No entanto, foi somente após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre prisão em 2.ª instância que o DJ conseguiu ser solto.

Entidades ligadas ao direito criticam o caso como uma inversão da lei: “O caso do DJ Rennan, portanto, é exemplo de decisão condenatória na qual, na prática, operou-se uma infundada inversão do ônus da prova. Isso porque em realidade a acusação não chegou a provar a concreta prática do fato imputado com o detalhamento de suas circunstâncias. Foi o juízo que, a partir de injustificadas inferências probatórias—carentes de substrato epistêmico—completou o caminho lógico que deveria ter sido trilhado sozinho pela acusação”.

Sobre estes jovens artistas, recaem acusações bastante parecidas, parecidas também com a de muitos outros artistas criminalizados do funk. Além deles dois, a DJ Iasmin Turbininha e o DJ Polyvox, (criador da batida 150 BPM), que também foram intimados a depor, mas não tiveram a prisão concretizada, ao contrário de Rennan e Poze, colegas de profissão. Em relação a Iasmin, única DJ mulher, negra de favela a dominar a cena funk com maior visibilidade no Rio e a ser criminalizada, a artista precisou junto com outros profissionais que a acompanhavam criar uma vakinha para custear sua defesa. Já o advogado de Polyvox, informou que o depoimento do artista tratava-se de uma intimação feita pelo delegado para descobrir quem financiava o baile funk da Nova Holanda no Complexo da Maré, e por isso os jovens foram convocados para depor.

Em entrevista ao portal Z Matéria, o advogado de Polyvox, Dr. Estevan disse: “Todos lamentam a cultura discriminatória ao funk, que infelizmente envolve os bailes em comunidades, deixando de considerá-los como uma expressão cultural do povo carioca e que é perseguida, justamente quando se pretende ouvir os profissionais que comercializam suas apresentações musicais em procedimentos investigatórios criminais”.

Mais recentemente ainda, no dia 29 de outubro de 2020, dois MCs cariocas receberam intimações da Polícia Civil em investigação que apura apologia ao crime: MC Cabelinho e MC Maneirinho. Nesse caso, o próprio MC reconhece o racismo que sustenta todo esse processo de criminalização do funk, há décadas:

E, como dito acima, ainda neste mesmo dia 29 de outubro de 2020,  outro funkeiro, o artista MC Maneirinho soube estar sendo investigado por apologia ao crime, e se manifestou em entrevista, dizendo: “Para falar a verdade, nem acredito que isso seja real. A polícia vai investigar o Wagner Moura por interpretar o Pablo Escobar? Vai atrás dos playboys que sobem o morro para retratar o que acontece na favela nos documentários? Eu sou MC, eu retrato o que acontece nas comunidades, essa é a minha arte…”

O músico também lamentou nas redes sociais com seus seguidores o que classificou como “covardia”:

Questionar porque jovens funkeiros incomodam as polícias, o poder judiciário e outros poderes instituídos no Brasil deve fazer parte da luta antirracista. A não culpabilização dessa juventude que promove manifestações culturais e artísticas nas suas favelas e periferias, bem como nas áreas nobres das cidades, deve estar no cerne da pauta antirracista. É necessário entender o que está na base da construção dessas constantes ações do Estado em relação à criminalização da cultura favelada. E entender também como esses artistas de favela se sentem perante as acusações que recaem sobre eles, mudando suas vidas para sempre.

Ingra Maciel, moradora de Acari, tem 28 anos e é formada em História pela UFRJ, pós-graduada em ensino de História da África, pelo Colégio Pedro II e auxiliar de pesquisa do Medialab da UFRJ. Na graduação desenvolveu sua pesquisa acerca da criminalização do funk carioca e o seu processo de resistência, e atualmente vem estudando o funk carioca a partir da perspectiva pedagógica.

Água não é mercadoria

Enquanto políticas de privatização avançam no setor de saneamento, moradores de favela ainda acreditam que só quem paga por água pode cobrar um serviço de qualidade.

Maré de Notícias #118

Reportagem: Breno Souza e Ruth Osório
Edição: Fred Di Giacomo
Por data_labe

Esta é a segunda reportagem de uma série sobre o direito à água na Maré. Uma parceria entre o data_labe e o Maré de Notícias.

Não basta coronavírus, crise econômica ou dinheiro na cueca do senador. O ano de 2020 ainda nos trouxe um tsunami em relação ao abastecimento de água. Logo nos primeiros meses, a água distribuída pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) chegou à torneira dos moradores com coloração duvidosa e cheiro e gosto muito ruins. 

Em seguida, com a covid-19, os velhos problemas de abastecimento de água nas periferias ganharam notoriedade, pois, sem acesso à água, não é possível garantir o básico na prevenção do vírus: lavar as mãos. 

Para completar, entre medidas de emergência sanitária, jateamento de ruas, promessas de abastecimento em áreas críticas e escândalos de desvios de verba em hospitais de campanha, o Novo Marco do Saneamento Básico foi sancionado pelo Presidente Jair Bolsonaro, e o processo de privatização da CEDAE, no Rio, avançou.

Dentro da favela, a situação está longe de ser das melhores: “Aqui onde eu moro com minha família, quem tem bomba é rei. Antigamente, quando não existiam tantas casas, tinha mais água disponível. Agora que a comunidade cresceu muito, os moradores precisam de bomba para encher suas caixas de água”. O relato é de Nayara Santos (22), moradora da região conhecida como Fim do Mundo. Diversas outras comunidades da Maré enfrentam esse mesmo problema.  Além disso, ainda há residências sem encanamento de água e moradores sem acesso à água mineral ou filtrada. 

Os dados do Censo Populacional da Maré (2019) revelaram que 98,3% da Maré possui rede canalizada de água em casa. É um dado bem próximo da realidade do município: de acordo com o SNIS 2018, 97,41% da população do Rio de Janeiro é atendida por rede de abastecimento de água. O que esses dados não mostram, no entanto, é qual a qualidade dessa água e com que frequência ela chega em uma casa do Complexo da Maré. Em março de 2020, a Ouvidoria Externa da Defensoria Pública do Rio de Janeiro divulgou um relatório com 434 denúncias de falta d’água no Rio em apenas 5 dias. Não é surpresa que a maior parte dessas denúncias venham das favelas, o que mostra que só a existência de uma rede de abastecimento de água não é suficiente.

CEDAE na Maré ou água é direito humano básico. – Foto: Douglas Lopes

E quem não paga pode cobrar?

Apesar do número significativo de denúncias, ainda é uma pequena parte da Maré que conhece seus direitos e sabe como denunciar a precariedade do serviço de abastecimento da água. Além da naturalização dessa precariedade, que faz com que o morador se acostume, o fato de não existir uma cobrança pelo serviço na maioria das casas cria um dilema também: se o morador não paga pelo serviço, como é que ele pode reclamar? 

No Brasil, duas leis são fundamentais para entender nosso direito à água: a Lei das Águas (n° 9433), de 1997; e a Lei do Saneamento Básico (n° 11.445), de 2011, atualizada pelo Novo Marco Legal do Saneamento. Antes mesmo da  Lei das Águas, a cobrança pelo uso da água já era considerada, mas é importante lembrar que a gente não paga pela água (que é de todos), e, sim, pelo tratamento e outros gastos na prestação do serviço. A Lei do Saneamento garante que os serviços de saneamento devem assegurar a sustentabilidade econômica, isso quer dizer que a cobrança pelo uso da água (o sistema tarifário) precisa ser inclusivo e, se for o caso, até não existir. 

A forma mais comum de fazer essa cobrança é por meio das tarifas sociais, um tipo de tarifa cujo valor é ajustado de acordo com a realidade do local de cobrança. Através do Decreto 25.438/99, a CEDAE promove a tarifa social para favelas e conjuntos habitacionais. O procedimento hoje é feito nas agências da CEDAE e, para moradores de favela, é necessário levar declaração original da FAPERJ e identidade.

A realidade é que os moradores de favela não são consultados sobre os valores da tarifa e, sequer sabem da sua existência. Essa ausência de informação faz com que muitos moradores não recorram aos seus direitos. De acordo com Ana Lúcia, coordenadora do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), seria necessário que a CEDAE traçasse um perfil real das pessoas que deveriam ser incluídas na tarifa social, registrando todos segundo sua faixa de renda. A recomendação da ONU é que as despesas com água não ultrapassem 3% da renda familiar. 

Se a universalização do acesso ao Saneamento Básico é a principal diretriz da Lei do Saneamento, o sistema tarifário precisa ser discutido a partir de custo acessível para todos. Para o engenheiro civil e especialista em saneamento, José Stelberto Soares, a reclamação dos moradores de favela, e que são usuários não pagantes, é também parte importante do processo da garantia de direitos: “Para estes casos, existe o chamado subsídio cruzado e a tarifa social. Se não é cobrado, tem que ser admitido, porque saneamento é saúde e é fundamental para a qualidade de vida da população como um todo. Essa questão de não cobrar tem que ser analisada sob a ótica da política pública: ninguém gasta a mesma quantidade de água. Quem tem uma piscina, quem tem um casão, um apartamento, um triplex, vai gastar muito mais do que o sujeito que tem uma casinha ou um barraco. Mais do que preço e tarifa, a questão fundamental é analisar qual é a situação.”

Se você é morador de favela, saiba que você tem o direito e o dever de reclamar dos serviços de saneamento, ainda que você não pague por eles. É dever da prefeitura e das prestadores de serviço garantir o acesso pleno ao saneamento e à informação a toda a população. 

Encontro de Saneamento de 2019. – Foto: Douglas Lopes

Água também é saneamento

Mas onde registrar as queixas de saneamento? As associações de moradores são historicamente locais onde os moradores das favelas vão para buscar informações e procurar soluções para os problemas de saneamento básico de suas ruas. Além disso, há também postos da CEDAE dentro das favelas onde os moradores vão para procurar soluções para os problemas de saneamento em suas comunidades.

A mobilização histórica dos moradores da Maré na luta por direitos básicos garantiu a entrada da água canalizada em muitas comunidades. Como a luta pela direito ao saneamento básico pleno nunca terminou, as novas gerações de moradores estão cada vez mais engajados com as pautas ambientais, unidos aos mais antigos e aos especialistas de diversas áreas, para, juntos, pensarem os rumos do saneamento básico no Complexo da Maré. Um exemplo disso é o Cocôzap, um projeto do data_labe, formado por jovens de diferentes favelas da Maré, que recebe queixas de saneamento básico dos moradores através do número 21 99957-3216. O projeto também tem sido pioneiro na organização de eventos, como o Encontro de Saneamento, que, em 2020, chega à sua terceira edição (virtual, por conta da pandemia) e conta com a parceria do Projeto Maré Verde, da Redes de Desenvolvimento da Maré, e da Casa Fluminense, referência nacional na luta pela redução das desigualdades sociais. Água e esgoto também são alguns dos temas abordados na Carta de Saneamento da Maré de 2020, que foi reformulada desde a sua última versão e está disponibilizada no site das instituições. A Carta é parte da Agenda Rio 2030 da Casa Fluminense e tem por objetivo levar as propostas das comunidades para melhorias de saneamento às mãos dos candidatos e candidatas à prefeitura da cidade este ano. Além disso, a Carta é um importante instrumento de luta por melhores condições de vida e serviços básicos nas favelas. 

Reclame aqui!

A CEDAE tem todo um serviço para o recebimento de queixas. Através do site www.cedae.com.br e no telefone de serviço de atendimento ao cliente 0800-28-21-195, os usuários que pagam e os que não pagam pelo serviço da empresa podem reclamar de falta de água, vazamento de água e do vazamento de esgoto. Casos as solicitações não sejam atendidas dentro do prazo previsto, os usuários reclamantes podem entrar em contato com a ouvidoria geral da empresa através do número 0800-031-6032 ou através do e-mail [email protected]. Outra alternativa é ir pessoalmente na sede da empresa, na Avenida Presidente Vargas, nº 2655 – Térreo, bairro da Cidade Nova, Rio de Janeiro – RJ.

Confira a primeira reportagem dessa série: Na Maré seca dos anos 80, mulheres de Nova Holanda se organizaram na luta por direitos.